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Terça-feira, 16.08.11

Cedeu ao segundo revés da vida e caíu em depressão profunda. Dopada por uma cornucópia de calmantes e anti-depressivos, ganhou peso e perdeu parte substancial de si. Um mal orientado desmame dos medicamentes produziu efeitos irreversíveis. Como há sempre excepção à regra, Laura, a cunhada, o irmão António Miguel e o amigo João Nuno ampararam-na. Intermitentemente, também os filhos, com maior assiduidade da parte de Gonçalo, mas lograram a salvação do lar, e sobretudo, dum pedaço ínfimo de amor-próprio, que medrou evitando pior desfecho.

 

A casa de Alvalade é agora um mausoléu de obras cristalizadas, prateleiras de livros quase quilométricas, ocasiões capturadas em fotografias, peças de arte que escaparam ao holocausto dos credores ou chegaram depois, móveis datados, caixas ocas, armários com gavetas onde se acumulam resmas de documentos e objectos de estimação sem préstimo, estilhaços de dias passados imaculadamente limpos pela mulher-a-dias que vem duas vezes por semana. Da passagem pelo mercado de trabalho sobra-lhe uma patética reforma. Não fosse o quinhão das rendas de um prédio herdado e partilhado com irmãos e sobrinhos, parcialmente habitado por gente mais velha que Matusalém em braço de ferro com a morte, e não teria o suficiente. Muitas vezes não sabe o que fazer ao tempo, aborrece-se com as amigas, um rancho de velhas em competição pelo record do maior número de sintomas do cardápio das doenças. 

 

Nunca se compatibilizou com a condução de automóveis, por isso, é utente diária do Metro de Lisboa. Vai recebendo alguns convites por conta das suas antigas ligações com o mundo das artes, mas, no geral, ocupa-se todo o dia com assuntos que só existem na cabeça dela. Pretextua motivos para ocupar os caixas do banco, põe toda a espécie de impertinentíssimas dúvidas a funcionários públicos na repartição de finanças e na segurança social. Entra em todas as lojas, apreça artigos, inquere sobre tudo. Quando não vai, telefona. Tira do sério os sujeitos de serviço no call-center das operadoras de telecomunicações, teimando na tarefa inglória de lhes arrancar uma resposta diversa das que estritamente lhes são ensinadas para executarem a sua função de papagaios do pirata, e justificarem os trinta dinheiros que arrecadam mensalmente, todos eles já com destino marcado antes de serem recebidos. Escreve impublicados poemas que se acumulam nas gavetas e muitas cartas manuscritas a tinta permanente, remetidas aos mandantes institucionais de desmandos vários.

 

Engenhou uma espécie de guerrilha geriátrica de ataque ao Estado, às operadoras, à banca e aos antros de consumo em geral, que basicamente consiste em perturbar desaustinadamente, alcandorada na idade e no bom ar. Os funcionários reviram os olhos quando a vêem franquear a porta, mas aturam-na, talvez pelo inofensivo fait-divers que proporciona à rotina diária. Na pior das hipóteses, em dias de maiores azeites, provoca um contra-ataque de malcriação ácida. Quando isso acontece, Alice cresce até três metros e deleita-se com a oportunidade de os acassapar usando elaborados ralhetes e sofisticadas censuras, cujo sentido está certa de não alcançarem cabalmente.

 

Chega a casa derreada como um caixeiro-viajante, faz qualquer coisa para comer e percorre os canais de televisão até ao comprimido para dormir. Vez por outra, há diferenças. Visitas dos netos louros do Manuel Maria mal acompanhado pela esperpêntica mulher transbordante de vogais e abreviaturas. De Gonçalo a solo ou com amaneiradas companhias. Desde que aprendeu a lidar com a internet, encontra-se com a filha e a neta no messenger, mas a canhestra forma de escrever português desta última constrange-a, e acaba por bater em retirada. 

(cont.)

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publicado por Champagne e Miniaturas às 21:54





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